DMT — O Beijo do Sapo
Você pode dizer que salvamos o mundo sem querer, ou que o mundo se salvou de nós de propósito.
Poucos ainda não haviam desistido. Os idiotas continuavam a se revezar no poder. As catástrofes se intensificaram. As notícias ruins só nos deixavam mais catatônicos e depressivos. Minhas redes sociais viraram catálogos de amigos suicidas. Ou pior, amigos que decidiram continuar a viver cinicamente, suicidando o planeta junto com eles.
Mas no meio da distopia, um acidente ocorreu. Não sabemos muito bem como, a teoria mais aceita começa com mosquitos.
Quando o planeta passou dos 3ªC de aquecimento a população de mosquitos explodiu. Eles estavam por toda parte. Eis que um outro animalzinho, que se alimentava desses mosquitos, também se multiplicou. O sapo. Um tipo específico. Um tipo esquisito. Não me importo mais com o nome científico dele, isso só nos servia para compartimentar a unidade inseparável de tudo. E, claro, tornar a natureza utilitária e rentável.
Enfim, essa espécie tem uma peculiaridade. Na verdade, duas. Duas glândulas que secretam DMT abaixo dos olhos, como lágrimas que caem ao gargalharem. Esse tal de DMT existe em quase todos os organismos vivos, alguns mais outros menos. Não sabemos o porquê e isso não nos interessa mais.
A população do sapinho cresceu tanto que eles inundaram os nascedouros dos rios que ainda faltavam. Essas águas temperadas com DMT foram parar nas nossas bicas e bebedouros.
Antes de fazermos as perguntas sobre o que estava acontecendo, já não faziamos mais esse tipo de pergunta.
Nós passamos a amar tudo e todos. Todas as fronteiras imaginárias foram destruídas.
Eu poderia tentar te explicar a utopia que realizamos, mas você não entenderia. Palavras são um código tão restrito para transmissão de informação.
Mas posso dizer que hoje nos sentimos inteiros e agora dançamos nas ruas, todos os dias.
2º Relatório:
Agora podemos explicar um pouco melhor o que houve. De fato, não fomos nós que salvamos o planeta, mas o planeta que se salvou através de nós. Para compreender isso, precisamos mudar toda a nossa compreensão sobre o nosso lugar no Cosmos.
O DMT do sapo nos ajudou a fazer isso internamente, mas até compreendermos e conseguirmos traduzir essa mudança numinosa em palavras, bom, levou tempo.
Até pouco tempo pensávamos que a vida era consequência do acaso. Que emergiu sem maior propósito à partir das infinitas probabilidades de um universo frio, morto, indiferente, caótico e que se esticará infinitamente… até seus átomos se dispersarem por completo.
Pior ainda, esse universo frio e sem propósito teria surgido à partir de um ponto de singularidade que explode e se expande absurdamente rápido, sem razão de ser. Eu já acreditei nisso, hoje vemos que essa é a teoria mais ridículo e improvável que qualquer discurso já concebeu. Um universo sem propósito? Onde já se viu?
O beijo do sapo nos mostrou que a consciência que tínhamos ao criarmos os fundamentos científicos ainda era extremamente primitiva. É claro que não sabíamos a razão disso tudo, somos apenas macaquinhos com ferramentas e geringonças.
Hoje vemos que a ciência ignorou algo simples e claro na natureza. A complexidade. Plasma virou átomo. Átomos menores se tornaram átomos maiores, que se juntam e criam corpos celestes, que se exprimem e criam átomos mais pesados, que compõem moléculas orgânicas, que estruturam organismos simples, que elaboram organismos compostos, que desenvolvem consciência, que se aprofunda e que se torna cada vez mais complexa.
Ou seja, o universo está aqui para gerar complexidade. Nós somos o universo em sua forma mais complexa. Pelo menos nesse canto da galáxia.
Nós somos os ouvidos, olhos, narizes, pele, dores e prazeres do universo.
Somos as mãos que o universo tem para se organizar de forma um pouco mais deliberada e se tornar cada vez mais complexo.
Mas nós esquecemos disso, ou só ainda éramos simples demais para sentir isso. E precisamos sentir isso! Saber disso intelectualmente não é o suficiente.
Foi isso que o sapo fez. Ele nos religou ao universo que somos a ao planeta que nos produz, nos alimenta e nos absorve.
Barro terrestre com o sopro radioativo divino do Sol.
Nos comportemos como tal.